sábado, 6 de dezembro de 2008

Um Conto de Natal

Natal

Conto

E ele a dar-lhe e a burra a fugir. Tanto já se tinha esforçado para vender os toiros em condições vantajosas que perdeu a conta aos artifícios montados nesse firme propósito de fazer o negócio que agora acabara de concluir na feira de Melres.
Nem em Canedo lhos quiseram por duas notas de cem mil reis a quantia que correspondia exactamente à última avaliação feita pelo Roto de Cabeçais nos vinte e cinco em Entre-os-rios.
- Tratantes, passa um homem um ano inteiro a pastar e a engordar o gado e agora dão-lhe aquela miséria de compensação por tanto esforço! Ele é erva, folhelho, palha e muitas vezes milho do canastro para manter uns bois sempre na esperança de, depois de bem medrados, tirar deles um suplementar rendimento de forma a poder sobreviver enfrentando as muitas adversidades que podem surgir sem a gente contar.
- Cento e oitenta paus por dois touros; bichos graúdos, possantes, capazes de lavrar num só dia dois campos de milho ou acartar do monte, cinco ou seis carros de mato, é mesmo a gozar com quem trabalha a terra!
Mas pronto, agora é rezar-lhes pela alma, no fundo o que interessava mesmo era sentir no bolso das calças de ganga o bafo das notas que pareciam acabadinhas de fazer na Casa da Moeda. São raras, quem tiver a felicidade de deitar os olhos em cima de uma montanha daquelas, todas de vinte escudos, pode considerar-se um homem rico.
Caminhava em direcção a casa pelos caminhos do monte levando numa mão a soga agora desocupada e na outra a vara de marmeleiro com que tocou os animais até à Melres.
- Isto de antecipar as feiras também tem que se lhe diga, um homem faz contas à vida e tudo o que lhe alterar o calendário religiosamente estabelecido no princípio do ano, acaba sempre por trazer grandes contrariedades. Falhou um dia de poda lá em baixo nas Enxurreiras e ainda por cima se havia de fazer bom tempo era hoje.
Tarde de Dezembro, véspera de Natal e ele a passar nas Corgas a digerir um negócio que sem ser bom ou mau, acabou por não atingir os desejados objectivos.
Anoitecia, o sino da igreja de Sebolido batia as cinco horas da tarde e o Ratana aconchegou-se um pouco mais dentro da samarra tentando impedir que o ar gelado de Inverno lhe penetrasse no corpo e chegasse até aos ossos.
Já perto do povoado, ali onde os caminhos se encontram e prometem variadas e incógnitas direcções, parou a contemplar a capelinha da Senhora do Monte. De chapéu na mão, sim porque um verdadeiro devoto tem de se descobrir e guardar respeito às coisas de da fé, benzeu-se e fez uma prolongada vénia. Um homem trás sempre dentro da solidão sentimental da sua vida intangíveis mistérios e ele na condição de criatura feita à imagem e semelhança de Deus, não escapava aos propósitos do destino e carregava também a pesar-lhe em cima do lombo, inquietações, angústias e medos e muito mais coisas que o iam minando como a aguardente a um alcoólico.
Como se de repente lhe viessem à cabeça todas as dolorosas realidades da vida, avançou para a entrada da capela disposto a rezar. Foi um desejo imprevisto, um baque no coração que não tem explicação mas que lhe condicionou todas as vontades previsíveis e lhe ordenou numa hipnose estranha o que tinha de fazer.
- O meu Quim! - Exclamou
O filho ausente na tropa a lutar na Guiné, nesse ultramar que derrete juventudes inocentes e que já há dois Natais não se sentava à mesa da ceia, entrou-lhe pelo pensamento dentro com um tiro desferido à queima – roupa que o degolasse ali, entupido por um nó que se formou de repente na garganta e a ferida da sua quase insuportável ausência, aquela fenda no peito que lhe andava a esmagar o coração, principiou de novo a sagrar.
Ajoelhou na terra húmida do recinto e, como um naufrago aflito no mar alto que visse ao longe o navio da salvação, ergueu as mãos ao céu e soltou o apelo que o devorava:
- Senhor, eu sei que sou pecador que decerto nem mereço um simples olhar da Vossa Divina Graça mas se poderes trazei de volta o meu pequeno, não por mim mas pela minha Ana que morre de saudades do filho! Não sabemos dele há mais de dois meses, o Maioto carteiro não nos chega com notícias, tão-pouco com um aerograma a dizer que está bem!
Os olhos humedeciam-se à medida que se embrenhava no entorpecimento da espontânea oração e aquele ser dos campos, era então o símbolo vivo de todas as fraquezas humanas, reduzido ao nada, ao barro de que foi formado ao pó a que há-de voltar a ser um dia. Recorria à santa que nem sequer via porque fechada dentro da capela decerto nem o ouvia e por isso ignoraria as suas preces. Tão pequena e frágil é a condição humana, desprotegido agarra-se ao divino com tal devoção que só um Deus muito severo e cruel não atenderia a tão humildes e sinceras súplicas.
Levantou-se e benzeu-se de novo com mãos trémulas ao mesmo tempo que deu um passo em frente e empurrou a porta do templo que se abriu e deixou ver na penumbra do pequeno compartimento, um altar mais ao fundo com a imagem de N. Senhora de Lurdes pausada em cima de uma toalha de linho branco que o olhava com a celeste bondade dos santos.
Assaltado por um sentimento de piedade repentino avançou timidamente para ela e ajoelhado disse:
- Estou eu para aqui feito tolo a pedir coisas e a senhora aqui sozinha ao frio dentro da capela sem comer e sem beber. Hoje é dia de festa e se vossemecê não se importar, vai consoar lá a casa comigo e com a minha Ana. A comida já deve andar às voltas na panela, são batatas cozidas com bacalhau e tronchudas regadas com azeite da terra, do mesmo que ilumina o Santíssimo Vosso filho que está lá em baixo na igreja e, se Ele quiser, há-de haver uma rabanadita ou duas feitas com mel do Manel da Deolinda e também um naco de bolo rei para sossega! Não sei se a Senhora gosta mas é sempre melhor que nada! Se a deixar aqui, nem consoada vai ter! Olhe que a minha Ana cozinha que é uma maravilha!
Sem esperar resposta pegou na estátua da santa, embrulhou-a na toalha, meteu-a debaixo da samarra saindo a caminho de casa.
Passou à Cruz de Ferro já a noite descia em manto gelado a cobrir os campos e os montes e as tronchudas nas leiras da Rodela, luziam já cobertas pela humidade do sereno nocturno.
Chegou finalmente a casa quando a esposa preocupada já se tinha decidido a procurá-lo. Ao ver aquele embrulho debaixo do braço do marido exclamou surpreendida:
- Que é que trazes ai homem, é um bacalhau? Se for já vem tarde, o que vais comer hoje, já está cozido!
-Não mulher, respondeu num sorriso de contente, trago aqui a N. Senhora de Lurdes que este ano resolveu vir consoar cá a casa! Em falta do nosso Quim fica ela a fazer companhia à gente, é sempre uma mulher que mete respeito!
Ela calou-se entupida por brusca e inesperada emoção a olhar para o marido, aquele pedaço de asno, rude como toco de carvalho, mas que tinha dentro do peito uma alma do tamanho do mundo. Chorou por que ele lhe lembrou o adorado filho ausente e também por confirmar mais uma vez ao longo desta vida de trabalhos e canseiras, que casou com um homem capaz de retroceder no tempo e reencarnar a inocente época em que foi criancinha.
A ceia estava pronta, na travessa de barro com ramos de flores estampados, apareceram as fumegantes batatas cozidas meio cobertas com postas de bacalhau e tronchudas. Um cheirinho a Natal espalhou-se na cozinha que a luz de um lampião a petróleo mal iluminava e a mesa posta tinha três talheres e outros tantos pratos, ao centro mais um outro cheio de rabanadas e um bolo rei embrulhado num papel de fantasia com pequeninas árvores de natal desenhadas, completava a fartura que se repetia todos os anos nesta noite.
A lareira crepitava em farto lume e, pela primeira vez neste Inverno, superava o frio que entrava pelas frinchas da parede e das lousas da cobertura porque o lavrador tinha trazido do monte um enorme tronco de castanho.
Trum, trum, trum
Alguém batia no postigo. O Ratana levantou-se num pulo e foi abrir a porta ao inesperado visitante. Ali, à frente dos seus olhos estava o filho fardado de camuflado militar. Nem um som pronunciou a sua boca estupefacta e sem medir os gestos, avançou e abraçou-se a ele a soluçar. A Ana veio também a correr e, por entre lágrimas e risos os três eram um só de pé na soleira da porta da singela casinha.
Veio a ceia agora ainda mais apetecida e os quatro a consoar em volta da mesa, faziam lembrar o santo presépio de Belém.

Do livro, "Douro Lindo" de Manuel Araújo da Cunha



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